Dos clássicos às novidades recentes, modalidade ‘física’ traz diversos benefícios pedagógicos aos pequenos.
Os tempos são de jogos em telas. Crianças hipnotizadas por tablets e smartphones viraram uma cena do dia a dia. Nessa era digital e conectada, falar em jogos de tabuleiro, daqueles com dados, pecinhas e cartas, pode parecer pitoresco ou anacrônico.
É uma impressão errônea. O mercado de jogos de tabuleiro tem se fortalecido em muitos países nos últimos anos. A feira alemã Spiel, maior evento mundial do setor, atraiu 910 expositores de 41 países em 2015. Os dados mais recentes do varejo dos EUA e Canadá, para 2014, indicam um crescimento de 20% nessa categoria. O papel da internet em auxiliar a renascença dos jogos à moda antiga é reconhecido entre os fãs. Entre os motivos estão o acesso a lojas especializadas e a criação de comunidades específicas em sites ou fóruns, além da difusão de informações sobre os jogos.
Embora jogos de tabuleiro sejam para todas as idades, eles trazem aspectos positivos para as crianças em especial. Educadores e psicólogos defendem os benefícios pedagógicos desse tipo de jogo em todas as faixas etárias. Para eles, o jogo físico e presencial, geralmente realizado em grupo, trabalha aspectos sociais, cognitivos e motores, entre os quais, respectivamente, o reconhecimento de regras, a construção de hipóteses e o aprimoramento da destreza manual.
Os psicólogos Michael Cole e Sheila Cole, em seu livro “O Desenvolvimento da Criança” lembram que Jean Piaget, um dos mais influentes estudiosos da psicologia infantil, “viu a capacidade de participar em jogos baseados em regras como a manifestação de operações concretas na esfera social, correspondentes a um egocentrismo menor”. O livro “Moves In Mind: The Psychology of Board Games”, dos psicólogos Fernand Gobet, Alex de Voogt e Jean Retschitzki, também destaca o interesse de Jean Piaget nesse tipo de jogo. “Vários conceitos de Piaget poderiam ser aplicados à psicologia dos jogos de tabuleiro: cooperação, descentralização, operações e abstração”.
Mas não é preciso ser psicólogo ou educador para ter ideia do impacto positivo dos jogos de tabuleiro. “Você tem memórias afetuosas de sua infância, sentado em volta da mesa com a família para um jogo?”, pergunta o site do documentário “Cardboard”, de 2012, que trata do fenômeno. Se já viveu essa experiência, há boas chances de você responder positivamente à pergunta.
E como trazer os jogos para o cotidiano da família? Preparamos um pequeno caminho. Avance uma casa para ver.
POR QUE JOGOS DE TABULEIRO PARA CRIANÇAS?
Resolução de problemas, criação de estratégias, habilidade lógica, ação e reação, habilidades sociais e interativas, entre as quais aprender a ganhar e perder, esperar a vez, respeito ao outro e intimidade com os colegas. São alguns dos benefícios citados pela pedagoga Sandra Guidi e pela psicóloga Lucia Ghisalberti, da Escola Stance Dual, em São Paulo. Aulas com jogos fazem parte da grade curricular da instituição para o ensino fundamental. “As crianças exercitam cotidianamente essas habilidades e depois as levam para a vida futura”, afirma Ghisalberti.
O livro “Brincar e Ler para Viver”, de Adriana Klysis, psicóloga, e Edi Fonseca, pedagoga, afirma que os jogos de tabuleiro trazem desafios interessantes mesmo para crianças pequenas no que diz respeito “ao aprendizado de participar de uma situação grupal que envolve regras simples, na qual precisam combinar a ordem das jogadas, esperar a vez, lidar com a frustração de não ter o resultado desejado no lançamento dos dados, aprendendo a lidar com as situações de conflito decorrentes das partidas, por um lado, e por outro desfrutando da rica convivência que essa situação propicia”.
POR QUE É BOM JOGAR EM FAMÍLIA
Não se trata de ir na loja, comprar um jogo e dar para a criança. É importante se envolver. Metade da graça do jogo de tabuleiro é a reunião de pessoas. Ao contrário de boa parte dos jogos em eletrônicos, a experiência do jogo físico é coletiva. Muitas vezes a criança preferirá a companhia dos amigos, mas isso não exclui a possibilidade de jogos em família. Produza a ocasião, junte todo mundo na casa, providencie comes e bebes. Programe para jogar em viagens ou no fim de semana, quando há mais tempo e convívio.
Jogar junto traz proximidade física, interação olho no olho e muita conversa. A cumplicidade que se desenvolve dentro de um jogo em prol de um objetivo comum é saudável. O jogo é uma boa opção para atingir esse propósito, em especial conforme a criança vai ficando mais velha e ocorre um afastamento de pais e filhos. “Há poucas atividades de lazer com interesse comum entre dois grupos tão distantes. E muitas vezes os únicos momentos de contato acabam sendo as refeições. Os jogos têm um potencial fantástico para unir os dois grupos”, escreveu Sergio Halabal, fundador da empresa de jogos Ludomania.
DÁ PARA IR MUITO ALÉM DOS JOGOS MANJADOS
Se você é um adulto e parou de acompanhar jogos de tabuleiro depois da infância e adolescência, saiba que existem muitas novidades na praça. Clássicos centenários, como xadrez, damas e gamão, continuam relevantes, assim como sucessos antigos como Banco Imobiliário (ou Monopoly) e Detetive. Mas existem centenas de outras alternativas, algumas delas resgates de jogos antigos que eram pouco conhecidos no Brasil. É o caso do Jogo do Ganso, cujas origens podem ser anteriores ao século 16 e que é considerado o primeiro caso de “jogo de trilha”, onde os jogadores avançam por um caminho lançando dados e seguindo instruções.
Em seu livro, Adriana Klysis destaca a família de jogos conhecida como mancala e que registra cerca de 200 variantes. De caráter estratégico, os jogos de mancala consistem em mover e acumular sementes em um tabuleiro de casinhas. Entre os lançamentos mais recentes, vale usar como filtro a idade recomendada e o tema do qual trata o jogo (que pode ir de fantasia a conhecimentos gerais, de personagens de quadrinhos etc). A página do Facebook da Ludomania e o portal Ludopedia trazem novidades da área.
GANHAR, PERDER E COOPERAR
Jogos de tabuleiro podem ser competitivos ou cooperativos. Os da segunda categoria geralmente colocam os jogadores competindo contra o jogo, mas também podem significar subgrupos de jogadores competindo entre si. Um título bastante conhecido de jogo cooperativo por aqui é o Scotland Yard, lançado nos anos 80 pela Grow, onde os participantes tem que se ajudar para desvendar um crime, ou o Descobridores de Catan, onde os jogadores tem que colonizar territórios. No exterior, há uma variedade bem maior de títulos cooperativos, incluindo lançamentos recentes. Esse tipo de jogo envolve colaboração entre todos os participantes em torno de um objetivo, que podem dividir tanto a satisfação da vitória como a decepção da derrota.
O jogo competitivo traz outro conjunto de benefícios, na opinião dos especialistas, e não menos importantes. Estes estão relacionados a superação do próprio potencial e ao sentimento de realização em determinadas competências, que variam conforme o jogo. Lucia Ghisalberti e Sandra Guidi, da escola Stance Dual, ressaltam também a importância do “ganhar e perder” pois “são parte do desenvolvimento emocional”.
E, quando adultos e crianças jogam, quando se deve “deixar” uma criança vencer? Um artigo do Wall Street Journal de 2015 fez a mesma pergunta e ouviu psicólogos. Os especialistas responderam que a partir dos 5 ou 6 anos o mais indicado é jogar mais “de verdade”, o que certamente fará a criança perder partidas e isso trará aprendizado para lidar com frustrações.
CRIE SEUS PRÓPRIOS JOGOS
“Muitas vezes, pais dizem que as crianças não se interessam por nada, mas se você propõe construir algo junto, pegar um pedaço de papelão ou uma toalha velha, e fazer um tabuleiro aí e depois jogar”, recomenda Adriana Klysis. Uma brincadeira então vira duas: não só o jogo em si, mas a construção dele. Materiais de pintura e colagem podem servir para fazer sua própria versão de diversos jogos.
Com papelão e canetinhas pode se inventar um jogo de trilha “autoral”. Jogos de mancala podem ser feitos a partir de uma caixa de ovo e feijões. Dois imãs redondos, que se encontra em aparelho de som automotivo, pode servir para fazer uma roleta magnética caseira. Pesquise na internet, em especial no YouTube, como fazer jogos diferentes. Em sites de outros países pode se achar também versões diferentes de jogos conhecidos para fazer sua própria adaptação.
APRENDIZADOS EXTRAS
Um jogo de trilha pode ser um passeio na floresta onde surgem animais diversos. Ou pode contar uma parte da história do Brasil, como o período do Império. Ou ainda ensinar a escovar os dentes. Outra opção é associar uma tarefa a cada casa: se cair na casa 5 tem que imitar um bicho, se for na casa dez tem que cantar um pedaço de música ou responder a uma pergunta.
Em 2013, a Unicef desenvolveu um jogo de tabuleiro para ensinar crianças da Papua Nova Guiné a se preparem para desastres naturais em uma região afetada por um ciclone. O clássico Banco Imobiliário/Monopoly teve como base o jogo The Landlord’s Game, criado para demonstrar as teorias do economista Henry George de que o acúmulo de propriedades potencializa a desigualdade social.
Contar sobre as origens culturais e históricas dos jogos é também uma forma de torná-los atraentes para as crianças.É o que faz “O livro dos dez melhores jogos de todos os tempos”, de Angels Navarro. Nele pode-se descobrir que as damas chinesas surgiram não na China, mas na Alemanha, e que o Resta Um foi criação de um prisioneiro francês do século 18.