Quarentena – A volta dos jogos de tabuleiro

Talvez você nem se lembre deles (ou nunca tenha jogado um). Mas os jogos de tabuleiro estão bombando, com cifras bilionárias e milhares de títulos lançados a cada ano. Conheça os mais interessantes.

O tédio era enlouquecedor. A lista da Netflix estava zerada, assim como todos os games do PlayStation. No celular, os joguinhos já haviam se tornado irritantes, e ninguém da minha família aguentava mais olhar o Instagram. O confinamento imposto pela epidemia de coronavírus esgotara todas as nossas reservas de entretenimento. Mas um amigo tinha esquecido por lá uma caixa com nome excêntrico: Ubongo. Não me empolguei muito, e as coisas não melhoraram quando ele me contou, por telefone (também estava confinado), que era um jogo de tabuleiro polonês do começo dos anos 2000. Mas resolvemos testar. Num misto de Tetris com Tangram, cada jogador recebia um conjunto de peças, e o objetivo era encaixá-las em figuras geométricas desenhadas em cartões, que mudam a cada rodada. Não é que era divertido? Mais do que isso, inteligente – e desafiador.

Este jogo é um puzzle contra o tempo. O quebra-cabeça precisa ser resolvido antes de acabar o tempo.

A cena acima é hipotética. Mas ilustra um fenômeno real: os jogos de tabuleiro (ou board games) estão vivos, têm evoluído – e propõem experiências radicalmente diferentes de clássicos como Banco Imobiliário, Jogo da Vida e War. A indústria de jogos de tabuleiro lança 5 mil títulos por ano, e seu valor deve chegar a US$ 21,5 bilhões em 2025 (segundo a empresa de pesquisas Grand View Research). É uma potência – dentro e fora das caixas.

O mercado de jogos de tabuleiro valerá US$ 21,5 bilhões até 2025.

ARCO-DA-VELHA

Os jogos de tabuleiro existem há milênios. Em 2013, um grupo de arqueólogos encontrou, na Turquia, o mais antigo que se tem notícia: as peças tinham mais de 5 mil anos de idade. Eram em formato de ficha, coloridas e com símbolos inscritos, como desenhos de porcos e cães. Os pesquisadores não conseguiram decifrar todas as regras do jogo, mas a hipótese é de que ele seja alguma brincadeira envolvendo bases numéricas.

Acredita-se que a região da Crescente Fértil, que abrangia os territórios do Egito e parte do Oriente Médio, seja o berço desses jogos. Foi na terra das pirâmides, aliás, que surgiu um dos mais antigos: Senet, cujo objetivo era levar peças de um ponto a outro de um tabuleiro retangular. Era bem popular: figuras como o faraó Tutancâmon e a rainha Nefertari eram grandes entusiastas.

No Império Romano, havia o Ludus Latrunculorum – algo como “O Jogo dos Mercenários”, em latim – em que dois participantes testavam estratégias militares em um tabuleiro. A primeira menção a ele data do século 1 a.C. O xadrez, por sua vez, surgiu na Índia 1.400 anos atrás a partir do chaturanga, que possuía peças e movimentações bastante semelhantes ao jogo atual.

Praticamente toda sociedade tinha seus jogos de mesa. Essa onipresença fez com que, em 1938, o historiador holandês Jonah Huizinga criasse a teoria do Homo ludens, usada até hoje pelos pesquisadores da área. Para ele, os jogos eram tão intrínsecos ao cotidiano (e desenvolvimento) do ser humano que isso deveria constar na nomenclatura da espécie. Além de Homo sapiens, seríamos também Homo ludens.

Para Huizinga, os jogos são como “círculos mágicos”: um espaço reservado em que os jogadores podem sair da realidade e, em segurança, experimentar novas sensações. “Nós somos seres famintos por experiências e histórias, e os jogos permitem que você simule desde conquistar um território a trair os seus amigos”, explica Tomás Queiroz, professor e criador de jogos de tabuleiro.

Foi pensando nisso que a americana Elizabeth Magie criou o Landlord’s Game (“Jogo do Proprietário”) em 1904. Você talvez tenha esse jogo em casa: é o Monopoly, ou Banco Imobiliário – um clássico entretenimento de dias chuvosos na praia. Filha de um jornalista progressista e abolicionista (que chegou a acompanhar Abraham Lincoln em comícios), ela queria criticar o capitalismo e a desigualdade da propriedade de terras.

O jogo clássico de comprar propriedades, construir casas e hotéis, cobrar aluguel de outros jogadores.

Mas logo depois que o jogo foi lançado, a empresa Parker Brothers comprou a patente de uma versão similar (cujo dono a vendeu como se fosse uma ideia original) e distorceu sua essência. O jogo, então, virou uma exaltação ao acúmulo de riquezas. Magie também vendeu suas patentes, acreditando que uma nova versão do jogo, mais fiel ao conceito original, fosse criada. Não rolou, e ela morreu em 1948 sem nunca ter ganho os devidos créditos pela criação.

Seja como for, Monopoly virou um enorme sucesso, e abriu as portas para que outros jogos de tabuleiro se tornassem populares. Nos anos 1940, surgiu nos EUA o Candyland, que até hoje vende 1 milhão de unidades por ano.

Ele foi criado por uma professora para distrair as crianças em casa durante um surto de poliomielite no país. É bem simples: os jogadores avançam no tabuleiro conforme as cartas que recebem, que correspondem às casas coloridas para onde devem andar. O nome do jogo vem de seu mundo fictício, feito inteiramente de “doces” (“candy”).

Outro fenômeno é o Risk, conhecido no Brasil como War. Ele se tornou um megasucesso global, com exceção de um país – e é justamente isso que ajuda a explicar o novo momento dos jogos de tabuleiro.

DA ALEMANHA PARA O MUNDO

Albert Lamorisse foi um bem-sucedido cineasta francês. Nos anos 1950, ganhou duas Palmas de Ouro em Cannes com curtas-metragens. Em 1960, levou um Oscar de Roteiro Original. Mas seu maior sucesso aconteceu fora das telas. Lamorisse criou, em 1957, o Risk.

A premissa você já deve conhecer: um mapa-múndi com uma porção de exércitos disputando territórios. O jogo foi um sucesso instantâneo e, em 1959, passou a ser comercializado em outros países pela Parker Brothers, a mesma distribuidora de Monopoly e que hoje pertence à multinacional Hasbro. O jogo existe até hoje em dezenas de versões, vendidas no mundo inteiro. Mas nunca emplacou em um país: a Alemanha.

“Depois da 2ª Guerra Mundial, os alemães queriam evitar ao máximo qualquer jogo que remetesse ao combate”, diz Queiroz. O relativo insucesso de War na Alemanha abriu espaço para o desenvolvimento de outros jogos – até que, em 1995, o país se tornasse referência neles.

O responsável por isso foi uma criação que extrapolou as fronteiras germânicas. Estamos falando de Colonizadores de Catan. O jogo se passa em uma ilha e, como o nome antecipa, o objetivo dos jogadores é colonizá-la. Para construir estradas e cidades, é preciso gerenciar recursos, como madeira e argila, distribuídos de acordo com o mapa sempre que alguém joga os dados. Ganha quem atingir dez pontos primeiro – ou seja, quem construir mais rápido.

Os jogadores tentam ser a força dominante na ilha de Catan, construindo estradas, vilas e cidades.

Mas a premissa simples não foi a única responsável pelo sucesso de Catan. Seu criador, Klaus Teber, que à época trabalhava como dentista, inovou na mecânica de jogo. Os dados, por exemplo, não servem para determinar quantas casas se deve andar, mas sim a zona do tabuleiro que receberá os recursos. Se o jogador possuir alguma construção ali, sorte a dele. Isso significa que, mesmo que não seja a sua vez, você continua participando ativamente do jogo, seja recebendo novos materiais, seja negociando trocas com os outros.

Além disso, o mapa é modular: permite alterar a posição dos recursos e adicionar expansões, fazendo com que as partidas sejam sempre diferentes.

Catan foi uma revolução – e o marco zero na era dos board games modernos. Teber largou a sala de dentista e fundou uma empresa junto com os filhos, para administrar as dezenas de versões temáticas do jogo, que já ultrapassou 30 milhões de unidades vendidas.

Hoje, as desenvolvedoras de jogos apresentam os seus lançamentos em feiras e convenções pelo mundo. A de Essen, na Alemanha, é a mais importante: mais de mil novos board games são lançados no evento, que acontece sempre no fim do ano.

Os mais de 200 mil visitantes vão lá comprar jogos para o inverno, quando passarão um bom tempo dentro de casa. Nos EUA, a maior feira é a Gen-Con, na cidade de Indianapolis. Durante quatro dias, 70 mil pessoas ocupam um centro de convenções, um estádio de futebol e diversos hotéis da região, que disponibilizam todas salas para jogatinas.

É a esses eventos que editoras brasileiras vão atrás de seus próximos lançamentos. Ao encontrar um bom produto, elas conversam com as empresas estrangeiras para comprar a licença de distribuição. Com o contrato feito, as editoras fazem a tradução e diagramação da versão em português e mandam para as fábricas (a maioria na China) onde o jogo será produzido.

“Levando em conta o período de negociação, o processo de trazer um jogo para o Brasil dura, em média, um ano”, conta Kleber Bertazzo, diretor financeiro da Conclave, editora criada em 2003 para vender livros de RPG e que, em 2013, passou a trabalhar com os jogos de tabuleiro. Ela é a responsável pela versão brasileira de Dominion, o jogo de tabuleiro com cartas mais popular do mundo. Nele, você é um monarca que busca expandir o seu reino e, para isso, vale de tudo, de fortalecer o castelo a contratar mercenários. “Dominion criou a mecânica mais recente de jogo, que é a construção do baralho (deck) durante a partida, e não apenas antes de começá-la”, explica Queiroz.

Dominion não é um TCG, mas a mecânica do jogo é semelhante à construção de um baralho (deck).

Na época em que a Conclave passou a distribuir jogos de tabuleiro, o Brasil contava com três editoras. Hoje, são mais de 30. Em 2018, 300 jogos foram lançados por aqui, movimentando mais de R$ 700 milhões, segundo dados da Associação Brasileira de Fabricantes de Brinquedos (Abrinq). No Brasil, outra empresa de destaque é a Galápagos Jogos. Criada em 2009, ela é a responsável por trazer títulos como Dixit, Ticket to Ride e Eldritch Horror. Deu tão certo que, em 2018, ela passou a fazer parte de um conglomerado francês de jogos de tabuleiro. Hoje, conta com um catálogo de mais de 300 produtos.

No Brasil, 300 jogos são lançados por ano.

Editoras e desenvolvedores independentes também testam seus produtos em encontros de jogadores. “A galera começa a chegar às 12h, e o encontro só termina às 5h do dia seguinte”, diz Fernando Celso, organizador do BoardGames São Paulo, encontro criado em 2015 e que reúne, mensalmente, mais de 200 pessoas. Num público bastante diverso, jogadores hardcore dividem espaço com iniciantes e famílias inteiras. Jogos como Carcassonne, Dixit e o próprio Catan são os mais populares.

O jogador escolhe uma de suas 6 cartas na mão e dá uma dica sobre a arte da mesma.

Muitos projetos nascem das plataformas de financiamento coletivo. “Esse modelo de financiamento ajudou a alavancar a indústria”, diz Fábio Cury Hirsh, brasileiro que trabalha como desenvolvedor de jogos na CMON, com sede em Singapura. A CMON, por exemplo, arrecadou mais de US$ 3 milhões em menos de um mês pelo Kickstarter, para uma nova edição de Zombicide, seu maior sucesso. O objetivo inicial era US$ 250 mil.

O financiamento coletivo também ajuda a tirar do papel projetos mais excêntricos. É o caso dos jogos do tipo legacy (em português, “legado”), moda que surgiu nos últimos anos. Sua proposta é interessante: eles só podem ser jogados uma única vez, seja por conta de revelações na história, itens que você precisa destruir ou porque os jogadores não podem mudar após a partida começar. Eles são a vanguarda dos board games. Mas não o único caminho.

“Um bom jogo não precisa ter mecânica inovadora ou ser cheio de detalhes”, diz Queiroz. De fato: basta que seja divertido. E isso muitos jogos, sejam legacy, europeus, brasileiros ou aquele War surrado e já quase esquecido dentro do seu guarda-roupa, podem ser. É só começar a jogar.

FONTE: SUPER INTERESSANTE

 
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